Mais de 80 mulheres,civis e militares,participaram de curso de operações de paz promovido pela Marinha do Brasil,no Rio — Foto: Ana Branco / Agencia O Globo
Mais de 80 mulheres,civis e militares,participaram de curso de operações de paz promovido pela Marinha do Brasil,no Rio — Foto: Ana Branco / Agencia O Globo
GERADO EM: 14/07/2024 - 04:30
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Demorou 10 anos para que Carla Daniel,hoje capitão de Mar e Guerra da Marinha do Brasil,alcançasse seu sonho: ser destacada para uma operação de paz das Nações Unidas. Desde 1947,o país participou de 50 missões deste tipo,envolvendo mais de 57 mil militares e civis,mas durante décadas,nenhuma mulher uniformizada foi escolhida. Os ventos começaram a mudar em 2013,quando a Marinha enviou uma observadora para a Operação das Nações Unidas na Costa do Marfim. No ano seguinte,Carla Daniel se tornaria a primeira oficial brasileira designada para um navio de combate,no Líbano,e em 2017,a primeira a trabalhar na sede do Departamento de Operações de Paz da ONU,em Nova York.
— A todo momento eu pensava: tenho que dar certo,tenho que fazer tudo direito,senão depois de mim não virá nenhuma mulher para o meu lugar — lembra a oficial em conversa com O GLOBO. — Se você é mais uma,você pode cuidar apenas do que é seu. Quando você é a primeira,o peso é muito grande. Ali naquele navio não era somente eu,éramos eu e todas as que poderiam vir depois de mim.
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Em 2000,o Conselho de Segurança das Nações Unidas adotou sua primeira resolução sobre o que se convencionou chamar “Agenda sobre Mulheres,Paz e Segurança”,que visa fomentar a participação feminina em missões de paz da ONU. Mas foi só em 2017 que o organismo internacional lançou uma estratégia em prol da paridade de gênero entre homens e mulheres uniformizados. Desde então,108 Estados membros (56%),incluindo o Brasil,adotaram um Plano de Ação Nacional para atender às recomendações da medida,segundo levantamento do programa PeaceWomen da Liga Internacional das Mulheres pela Paz e Liberdade (WILPF),a mais antiga organização de mulheres pela paz do mundo.
— Quando fui escolhida para participar da Unifil [força interina da ONU no Líbano],imaginei que ficaria em terra firme,porque até então mulheres só embarcavam em dupla,e eu iria sozinha. Foi uma surpresa quando me disseram que minha função principal seria de assistente do almirante e,por isso,ficaria a bordo com 263 homens,mais de 40 oficiais — conta Carla Daniel. — Todos me respeitavam muito e nunca pensei em desistir,mas teria sido mais fácil se tivesse uma companheira.
Mulheres no front
Na primeira semana de julho,ela e mais 13 pioneiras das Forças Armadas de Brasil,Ruanda e Reino Unido foram convidadas a compartilhar suas experiências com outras 80 mulheres,durante o 12° Curso de Operações de Paz para Mulheres,promovido pelo Centro de Operações de Paz e Humanitárias de Caráter Naval (COpPazNav) da Marinha do Brasil,no Rio de Janeiro.
Foi a primeira edição que teve apoio do Ministério das Relações Exteriores,o que fez com que houvesse um salto na diversidade do programa: este ano compareceram representantes de 37 países,em comparação com 11,em 2023,e oito,em 2022.
Capitão de Mar e Guerra Carla Daniel foi uma das palestrantes do 12º Curso de Operações de Paz para Mulheres — Foto: Ana Branco / Agencia O Globo
Por uma questão de ordem e hierarquia,as alunas militares e policiais pediram para não serem identificadas na reportagem. Mas todas concordaram que,para além da formalidade de um curso como esse,em que o intuito é aprender sobre os mecanismos de funcionamento de uma missão de paz e suas oportunidades de trabalho,a mensagem central é,na verdade,sobre sororidade,a ideia de irmandade entre as mulheres,independente de suas peculiaridades. Sem isso,afirmam,é quase impossível avançar sem sequelas — físicas ou emocionais.
— Eu achava que era difícil apenas no meu país,mas estou vendo que é difícil em qualquer lugar — desabafou uma delas.
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Apesar da grande variedade geográfica,linguística,cultural e religiosa presente no evento,os relatos se entrelaçaram:
— Os homens alegam que não somos boas,nem fortes o suficiente,então temos que provar nossa capacidade a todo momento — comentou outra aluna.
Alunas do curso de operações de paz participam de exercício de evacuação na Base dos Fuzileiros Navais,no Rio — Foto: Divulgação/ Marinha do Brasil
Elas afirmam que a mentalidade machista das forças armadas e de segurança está mudando à medida que mais e mais mulheres ingressam em suas fileiras,e que cada vez menos comportamentos invasivos ou desrespeitosos são repetidos. Mas ainda são uma minoria expressiva nos quadros uniformizados mundo afora,o que dificulta o rompimento de algumas “normas” culturais e tradições.
— Na minha formatura como oficial,o chefe do Estado-Maior me cumprimentou com dois beijinhos no rosto. Ele me conhecia desde criança,mas naquele contexto esse gesto era totalmente inapropriado. A partir disso,comecei a esticar a mão antes de qualquer oficial vir falar comigo — disse ao GLOBO uma das estrangeiras. — Também era muito comum eu ser apresentada pelo meu chefe como “a filha do fulano”,porque meu pai era um coronel da reserva. Hoje isso não acontece mais.
Há ainda questões pessoais delicadas que envolvem desde expectativas culturais de papéis de gênero dentro da unidade familiar,até lidar com a distância dos filhos (que podem estar sendo amamentados) e do/a parceiro/ a durante uma missão,cuja duração mínima na ONU é de seis meses. Para as solteiras,um dos questionamentos mais comuns é se não pretendem se casar (“como se o serviço militar fosse um impeditivo para isso”); para as casadas,não raro escutam que ficarão sem marido se insistirem na função.
Mulheres integram quadros militares há séculos — basta lembrar de Joana d’Arc na França e de Maria Quitéria no Brasil. A brasileira,no entanto,teve que se passar por homem para ingressar no Exército,enquanto a francesa se vestia como um. Hoje,isso não seria necessário,mas muitas ainda relatam a necessidade de apagar traços que as identifiquem como mulheres.
Alunas do curso de operações de paz participam de exercício de evacuação na Base dos Fuzileiros Navais,no Rio — Foto: Divulgação/ Marinha do Brasil
No início da carreira militar,a tenente-coronel Carolyne Möller,atual assessora de gênero do Escritório de Assuntos Militares da ONU,colava papeizinhos com frases motivacionais (“Sou forte”,“Eu consigo”,“Vamos lá”) no espelho do banheiro e as lia para si mesma todos os dias de manhã depois do banho,antes de ir para o quartel.
— A nova geração é mais confiante,tem mais orgulho de ser mulher. Ainda bem — disse a oficial britânica na aula. — Pensei em desistir várias vezes,e sinto que fui perdendo minha identidade ao longo do caminho. Até hoje me pergunto: qual é a minha identidade enquanto mulher? Para mim,participar de um evento como este é um respiro.
A meta estabelecida pela ONU é que,até 2028,as mulheres uniformizadas correspondam de 15% a 30% do quadro em missões de paz,com variações de acordo com a instituição (militar ou policial) e tipo de destacamento (individual ou dentro de uma tropa). Ainda há um longo caminho a ser percorrido,mas os efeitos da política de paridade de gênero já podem ser sentidos: se em 2018,quando entrou em vigor,apenas 3,9% de todos os militares destacados em operações de manutenção de paz eram mulheres,em 2022 elas representavam 7,3%,segundo relatório do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Sipri).
Carla Daniel deu o recado:
— A barreira já foi quebrada. Nos deem uma chance e nós nunca iremos parar.
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