Cânhamo já é usado para fabricar camisetas e outras peças de roupas e até para fabricar concreto — Foto: Messe Frankfurt/Yarn Expo Autumn edition
Cânhamo já é usado para fabricar camisetas e outras peças de roupas e até para fabricar concreto — Foto: Messe Frankfurt/Yarn Expo Autumn edition
GERADO EM: 24/11/2024 - 17:50
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A recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que autoriza a importação de sementes e o cultivo de cânhamo para fins medicinais representa um marco na política de drogas brasileira. Essa decisão,que se propõe a abrir caminhos para a utilização econômica e terapêutica da planta,é um avanço histórico. No entanto precisa ser analisada de forma crítica,pois ainda contém limitações que demandam revisão.
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A autorização é específica para o cânhamo,uma variedade da planta Cannabis que não apresenta efeitos psicotrópicos,pois tem baixo teor de tetrahidrocanabinol (THC),composto psicoativo responsável pelos efeitos que alteram o estado mental,associados ao uso recreativo da planta. O ponto negativo é que essa decisão ficou limitada à produção de medicamentos e outros produtos de uso farmacêutico,excluindo outros potenciais usos industriais,como a produção de fibras,tecidos,bioplásticos e materiais de construção.
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Isso cria uma contradição com a Convenção Única sobre Entorpecentes,de 1961,de que o Brasil é signatário. Ela isenta o cânhamo para fins industriais (fibra e semente) das restrições aplicadas a diversas drogas entorpecentes. Em seu artigo 28,parágrafo 2,o texto afirma expressamente:
— A presente Convenção não se aplicará ao cultivo da planta de Cannabis destinado exclusivamente a fins industriais (fibra e semente) ou hortícolas.
O mais irônico é que essa convenção foi regulamentada no Brasil por meio do decreto nº 54.216,de 27 de agosto de 1964,assinado pelo então presidente Castello Branco,no regime militar. Por tudo isso,a limitação da importação e cultivo à produção de medicamentos e produtos farmacêuticos parece totalmente equivocada,com potencial de gerar uma nova rodada de disputas nos tribunais.
A decisão do STJ também transfere à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a responsabilidade pela regulamentação do cultivo,exigindo a publicação de normas em até seis meses. A insegurança jurídica permanece até que tais normas sejam definidas,e essa lacuna coloca em risco os avanços conquistados. Empresas interessadas no cultivo e na transformação do cânhamo industrial aguardam com grande expectativa,pois a falta de regulamentação específica para esse mercado no Brasil impede que o setor floresça,comprometendo os potenciais benefícios econômicos e sociais.
Numa perspectiva global,o mercado de cânhamo cresce de forma acelerada,impulsionado pelas aplicações sustentáveis da planta,desde bioplásticos e tecidos até o uso de materiais como o hempcrete,uma alternativa ecológica ao concreto tradicional. Canadá e Estados Unidos já demonstraram as oportunidades econômicas e ambientais dessa lavoura,que poderia transformar o Brasil num líder sustentável. No entanto as restrições mantidas pelo STJ ignoram esse potencial e limitam o cânhamo a um nicho restrito,em vez de aproveitá-lo de forma ampla e estratégica.
O caminho para a implementação plena e segura dessa decisão depende de regulamentações que protejam o direito das empresas e dos pacientes de acesso a produtos de Cannabis medicinal,algo já regulado pela Anvisa com a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 660,que permite a importação de produtos à base de Cannabis elos pacientes. No entanto o recente lobby de setores da indústria farmacêutica,que tentou reverter essa regulamentação,representa uma ameaça ao acesso democrático a tratamentos medicinais seguros. Limitar o cânhamo apenas ao uso medicinal representa um avanço insuficiente e subaproveitado para um país com a biodiversidade e a capacidade agrícola do Brasil.
É crucial que avancemos com uma visão ampla e restaurativa para o cânhamo. Precisamos garantir segurança jurídica e um mercado aberto a todas as possibilidades sustentáveis e econômicas que essa planta oferece.
*Patrícia Villela Marino é presidente do Instituto Humanitas360 e integrante do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República e do Conselho Nacional de Políticas Criminal e Penitencária do Ministério da Justiça,Ricardo Anderáos é jornalista e diretor-executivo do PDR Fundo Filantrópico
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