Daniela Ligiero — Foto: Divulgação RESUMOSem tempo? Ferramenta de IA resume para você GERADO EM: 17/09/2024 - 04:30
Daniela Ligiero — Foto: Divulgação
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Mais de 1 bilhão de crianças em todo o mundo — ou uma em cada duas — sofrem algum tipo de violência anualmente,alerta a Organização Mundial da Saúde (OMS),impactando não apenas o presente das vítimas,mas comprometendo também seus futuros em áreas como a educação,saúde e bem-estar. Diante desse cenário alarmante,será realizada em novembro,em Bogotá,Colômbia,uma Conferência Ministerial Global sobre o Fim da Violência Contra Crianças,a primeira em que o tema será discutido com exclusividade em uma reunião de nível internacional.
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De olho no evento,o movimento global "Champions for Childhood" ("Campeões pela Infância"),composto por sobreviventes,especialistas e ativistas,uniu-se com o objetivo de mobilizar esforços para chamar a atenção dos governos e exigir ações urgentes e concretas para acabar com o quadro em nível mundial. Nesta terça-feira,o grupo publicou uma carta aberta convocando os líderes globais a priorizarem a proteção infantil em suas agendas e a adotarem compromissos que correspondam à gravidade da crise. No documento,a coalizão também destaca que a violência contra crianças e adolescentes não é um problema isolado,mas cíclico,capaz de deixar cicatrizes físicas e emocionais que podem durar a vida toda e impactar gerações futuras.
Para falar sobre o assunto,o GLOBO conversou com Daniela Ligiero,membro do Global Survivor Council e presidente da Together for Girls,parceria global dedicada a acabar com a violência contra crianças,com foco particular na violência sexual. Fundada em 2009,a organização que também integra a coalizão atua em colaboração com instituições internacionais como o Unicef e a OMS,governos,sociedade civil e setor privado.
Ligiero,que sofreu abuso na infância,já atuou como vice-presidente de Estratégia para Meninas e Mulheres na Fundação da ONU no Departamento de Estado dos EUA e foi representante adjunta no escritório do Unicef no Brasil.
Champions for Childhood: Coalizão busca instar governos a responder à crise da violência na infância e adolescência na primeira Conferência global sobre o assunto,que ocorre em novembro na Colômbia — Foto: Divulgação
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Como sua experiência pessoal como sobrevivente de violência na infância influenciou seu trabalho em proteção infantil? O que te motiva a continuar nessa luta?
Eu não gosto de dar muitos detalhes sobre o que aconteceu,mas era uma pessoa próxima à minha família. Eu tinha seis anos. Vim de uma família com recursos,educada,e meus pais sempre conversavam sobre o que fazer quando uma pessoa estranha faz alguma coisa. Sabe aquela visão da van branca que vem e te oferece balinha pra você ir no parque? Mas e a conversa sobre o que você faz quando é uma pessoa de confiança,como um professor,um técnico,um padre,um amigo próximo dos pais ou até mesmo alguém dentro da família,um avô,um tio...? Sabemos que a maior parte dos casos de abuso sexual acontecem com pessoas conhecidas. Eu vivi com medo durante muito tempo e isso me afetou profundamente. Com 15 anos,assisti um filme sobre uma menina que tinha sofrido abuso sexual e tive um momento de clareza: “caraca,foi isso que aconteceu comigo?”. Naquele dia,quando meus pais chegaram,finalmente eu pude falar tudo.
Eu tive muita sorte por ter tido recursos e possibilidades de receber ajuda,terapia,uma série de outras coisas que me levaram a ser a pessoa que sou hoje. Tenho um doutorado em psicologia,sou líder de uma grande organização que trabalha esses temas no mundo todo. Comecei há uns 15 anos,trabalhando na época no Departamento de Estado quando a Hillary Clinton estava lá. Eu a assessorava na estratégia americana de violência contra mulheres e crianças. E ninguém falava sobre sobreviventes. Era como se isso acontecesse só com outras pessoas. Então decidi publicamente falar da minha história,queria que as pessoas soubessem que esse silêncio que existe em volta disso é uma das piores coisas. É importante falar para que os governos e os líderes possam ter uma resposta adequada para o tamanho do problema que é a violência contra crianças e adolescentes,em específico a violência sexual.
Quando se fala em violência contra crianças,isso abrange uma ampla gama de tipos de violência,desde abuso sexual,mas também trabalho infantil,bullying,maus tratos,cada uma ocorrendo em diferentes contextos e em diferentes lugares. Quais os maiores desafios para uma resposta abrangente o suficiente diante dessa diversidade de formas de violência,e também da complexidade para rastrear esses múltiplos contextos?
O maior desafio que eu vejo é um problema político,onde os temas de violência contra crianças e adolescentes são vistos como complicados,difíceis,múltiplos e,mais do que isso,questões que são privadas,que não têm muita solução. Parte do que a gente precisa quebrar é essa visão,porque a gente sabe,existem programas,existem políticas públicas,existe uma série de coisas que podem ser feitas,que são avaliadas,que têm ciência,que mostram que é possível fazer a diferença. A questão é,estamos priorizando isso politicamente ou não? Muitas dessas várias violências acontecem nas sombras,em silêncio. Então trazer a luz é parte da solução.
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No caso do Brasil,um país de grandes proporções continentais e de grande desigualdade socioeconômica... Quais os maiores problemas nesse tema e o que pode melhorar?
Quando a gente pensa na violência no Brasil contra crianças e adolescentes,há três temas muito importantes. O Brasil tem uma taxa de homicídios muito alta de adolescentes,e são principalmente meninos negros,adolescentes. Tem uma questão de gênero e tem uma questão racial. O segundo é a violência sexual,principalmente contra meninas. E tem muito a ver com pobreza,com lugares onde há desigualdade significativa. A terceira,que acontece no Brasil e no resto do mundo,é a violência sexual,a exploração sexual on-line. Segundo a ONG SaferNet Brasil,em 2023 houve um aumento de 70% de violência sexual infantil on-line,em comparação com o ano anterior,ou seja,de 14 mil relatos,para 23 mil. E isso é só a ponta do iceberg.
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Existe uma série de tipos de violência sexual no Brasil,onde você não tem atenção,não tem políticas públicas que realmente estão tentando trabalhar esses sistemas de maneira compreensiva. O que a gente vê é que os países que decidem fazer isso,em um nível mais alto político,fazem uma diferença. Um exemplo é a Alemanha. Eles têm um grupo de sobreviventes de vários tipos de violência sexual,que são o Conselho Nacional,que trabalha diretamente com o governo,para ajudar a criar,implementar,avaliar políticas públicas em relação à violência sexual contra crianças e adolescentes. No Brasil,há exemplos muito bons que fazem isso com a sociedade civil,com grupos de pessoas com HIV e uma série de outros temas. Mas,para esse,há uma lacuna.
Como você disse,a violência contra crianças e adolescentes em espaços digitais tem crescido muito nos últimos anos,dada a natureza complexa dessas plataformas e a dificuldade de supervisão. Quais são as lacunas mais críticas nas atuais políticas de proteção digital?
Um dos principais problemas é que toda essa responsabilidade agora está só nos pais. Eu tenho duas filhas,uma de 12 e uma de 16. Meu marido e eu temos de monitorar tudo,e cada dia tem um app diferente. É impossível. É injusto. O que os pais podem fazer é conversar. Fora isso,a grande responsabilidade é dos governos e depois do setor privado. Os governos podem regular isso. É como está sendo feito hoje no Brasil com o X. O governo pode implementar políticas que responsabilizem plataformas on-line a criarem mecanismos de segurança,e tem de haver consequências quando isso não acontece. O problema é que as plataformas sofrem zero consequências na maior parte dos países e fazem o que elas querem. Existem países que estão fazendo isso e estão mostrando que é possível regular. Na Austrália,por exemplo,hoje existe um cargo de alto nível no governo cujo papel é ajudar na criação de políticas para ter certeza que as crianças e os adolescentes estão protegidos no mundo virtual.
Quais são as suas expectativas em termos de compromissos concretos que podem surgir da conferência na Colômbia? O que é mais urgente?
Uma conferência só para esse tema é algo único e histórico. O pior cenário seria sair de lá e ter sido só outra conferência. Queremos que os governos venham com compromissos. Há uma série de coisas que já estão sendo feitas,mas qual é o próximo passo? Quais são os compromissos adicionais que vão ser feitos para realmente priorizar esse tema no nível político?
Serão três áreas gerais a serem debatidas. Uma é a questão dos pais e dos cuidadores,para ajudar a proteger as crianças e prevenir a violência. A segunda são as escolas e como torná-las mais seguras. E a terceira são serviços voltados para crianças,adolescentes e adultos que são sobreviventes de violências. No nosso grupo,temos também a questão on-line e a participação dos sobreviventes,das pessoas que têm essa experiência de vida,dentro do âmbito das políticas públicas.
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