Equipes de busca em Canoas,após inundações no estado do Rio Grande do Sul — Foto: Cristiano Mariz / Agência O Globo
Equipes de busca em Canoas,após inundações no estado do Rio Grande do Sul — Foto: Cristiano Mariz / Agência O Globo
GERADO EM: 28/06/2024 - 04:37
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O Rio Grande do Sul deverá considerar mais do que as estratosféricas perdas da catástrofe em que está mergulhado.
— Há uma imensa ansiedade natural pela reconstrução. Mas a inclusão de resiliência às mudanças climáticas deve orientar todas as medidas,das estruturantes,como obras de infraestrutura e habitação,às não estruturantes,o que inclui soluções baseadas na natureza,monitoramento,planos diretores e políticas públicas. O preço de não fazer isso será ainda mais alto,em vidas e economia — alerta o hidrólogo Rodrigo Paiva,um dos cientistas à frente das medições do nível do Guaíba feitas pelo Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IPH/UFRGS).
O monitoramento do IPH ajudou a proteger os habitantes da Região Metropolitana de Porto Alegre nos momentos críticos. O grupo fez também previsões sobre possíveis consequências das mudanças climáticas,com recomendações técnicas às autoridades públicas sobre a reconstrução,incorporadas aos editais lançados pelo estado. Numa área historicamente sujeita aos efeitos de extremos de chuva devido à sua localização e topografia,o Rio Grande do Sul pode ter nas próximas décadas um aumento de 20% das vazões máximas dos rios,segundo o estudo da UFRGS. Paiva observa que os rios das montanhas gaúchas são únicos no Brasil,pela combinação de volumes caudalosos em leitos com alta declividade. Por isso,são capazes de subir 20 metros acima do nível em questão de horas,como fez o Taquari em maio,o que ele compara a um “tsunami”. Para agravar,todas as cidades da Região Metropolitana de Porto Alegre estão em áreas baixas,vulneráveis a inundações,bem como as cidades à margem da Lagoa dos Patos.
A reconstrução é trabalho de anos,mas entre as medidas urgentes está a recomposição e ampliação imediata de todo o sistema de proteção contra cheias de Porto Alegre,com seus diques,comportas,reservatórios e bombas. Também urgentes são sistemas de alerta locais que cheguem à população,educação para o risco e planos de contingência,para que autoridades e população saibam como agir.
Para muita gente,sobretudo na serra,mudar será preciso. Não é simples escolher áreas totalmente seguras em regiões como a da Serra Gaúcha,com municípios espremidos entre rios caudalosos e encostas íngremes. O pesquisador Gean Paulo Michel,do Grupo de Pesquisa em Desastres Naturais (Gpden/UFRGS),frisa a urgência do mapeamento:
— Muitas coisas são urgentes. Mas o essencial é entender quais áreas apresentam maior propensão a deslizamentos e inundações. Os municípios estão iniciando processos de realocação de famílias,e não devemos permitir que novas áreas de risco sejam criadas — diz Michel.
Na serra,parte das respostas deve vir do mapeamento coordenado pelo Laboratório Latitude,vinculado à UFRGS,em parceria com o Centro Estadual de Pesquisas em Sensoriamento Remoto e Meteorologia (CEPSRM). O trabalho já identificou cinco mil cicatrizes de movimentos de massa na Região Hidrográfica do Guaíba nas chuvas de 27 de abril a 13 de maio,quando ocorreram os maiores volumes. Entram na conta dos movimentos de massa os deslizamentos de solo e rochas e os fluxos de detritos,sendo esses últimos uma espécie de rio,que desce encosta abaixo carregando velozmente água,lama,pedras e árvores. Algumas das cicatrizes chegam a dois quilômetros de comprimento. O trabalho está em curso,e o número final pode chegar a 12 mil cicatrizes. De longe,o maior já registrado no Brasil.
Em toda a região,os mais duramente afetados são os municípios dos vales dos rios Taquari e das Antas,de relevo íngreme e acidentado e que receberam mais chuva. O desastre só não foi ainda maior porque a área é predominantemente agrícola e tem baixa ocupação. Agora,dizem especialistas,é essencial avaliar o risco geológico,planejar o uso emergencial e de longo prazo,seja nas estradas ou na ocupação das áreas urbanas e rurais. Os autores do trabalho disseram que em parte considerável dos municípios será preciso realocar as áreas de residências e fazendas.
— São medidas impopulares,mas não é responsável reconstruir sem planejamento com base em ciência. O resultado,quando houver extremos,será novo desastre — salienta Paiva.
No caso das áreas agrícolas que não forem deslocadas e possam ser recuperadas,existem soluções variadas. Em todas elas,aprender a conviver com o risco da forma mais segura,por meio de alertas e treinamento,será imprescindível.
— Será impossível evitar todos os tipos de risco em todas as áreas e,nesses casos,precisamos pensar em mecanismos de gestão que permitam a convivência com o risco através do aumento da resiliência e da capacidade de enfrentamento — diz Michel. Nesses casos,o sistema de alerta local é um dos mecanismos que permitem uma convivência com o risco. A educação voltada a uma cultura de prevenção também é essencial. Mas não é só isso.
— Os principais instrumentos de convivência são os planos de contingência,previstos pela Lei 12.608. Neles devem estar detalhadamente estabelecidos protocolos de ação nas situações de desastres,desde os coordenadores da Defesa Civil até os cidadãos — acrescenta Michel.
A recomposição das matas ciliares dos rios está entre as medidas que podem ajudar a reduzir o impacto de grandes chuvas. Mas a costumeiramente desprezada vegetação dos brejos,chamados de banhados no Sul,cumpre papel importante. Foram os remanescentes dessa vegetação de várzeas que seguraram parte do impacto da onda de inundação que veio da serra. Paiva defende medidas como o replantio onde é possível e as chamadas áreas-esponja,com vegetação que absorve muita água nas margens,além de áreas de escoamento dentro da cidade.
Há mais de 30 anos estudando os banhados gaúchos,Uwe Schulz,diretor no Brasil da Aliança Tropical de Pesquisa da Água,destaca a importância dessa vegetação:
— Os brejos absorvem o excesso de água e depois a devolvem para os rios aos poucos,controlando o fluxo normal. Mas a maioria deles foi destruída ou fragmentada. Precisamos de muito mais e maiores. Para isso,teremos que deslocar plantações e cidades. Não será barato,pois demanda desapropriações e é impopular. Porém,mais custoso ainda será ter novos desastres. Brigar com a natureza sempre custa mais caro.
Há paralelos entre as inundações do Rio Grande do Sul com aquelas provocadas pelo furacão Katrina,que devastou os estados de Louisiana e Mississipi,no sul dos EUA,há quase 20 anos. Lá e cá,ruas alagadas,pessoas ilhadas à espera de socorro,abrigos improvisados e sistemas antienchente que falharam. As perdas humanas e materiais de ambos os eventos também foram inéditas em seus países.
Até hoje,o Katrina é considerado a pior catástrofe natural da História americana. Foram 1.392 mortes e US$ 125 bilhões de dólares de prejuízo na época (ou US$ 190 bilhões,em valores de 2022). Um dos grandes problemas do Katrina foi a falta de preparo da cidade de Nova Orleans para um evento daquela magnitude.
Nos dias que precederam a chegada da tempestade,o então prefeito,Ray Nagin,ordenou a evacuação da população. Mais de um milhão de pessoas deixaram a cidade,mas cerca de 150 mil se recusaram a sair,e a prefeitura não havia montado abrigos,para não incentivar as pessoas a ficar. Quando a água subiu mais de cinco metros após a ressaca do Katrina sobrecarregar e avariar os sistemas de barragens,inundando 80% da cidade,a tragédia tomou proporções inesperadas. Até hoje discute-se se Nova Orleans realmente se recuperou; a população caiu de 485 mil em 2000 para 230 mil um ano após a tragédia.
O maior legado do Katrina foi uma mudança radical nas políticas públicas e no papel da Fema (Agência Federal de Gestão de Emergências). Uma série de leis cortou a burocracia entre as esferas federal e estaduais e agilizou a resposta para estados de emergência.
Foram destinados mais de US$ 100 bilhões para reconstruir não só as barragens da Louisiana,mas também para reformar outros sistemas de emergência pelo país. Treinamentos de equipes locais e nacionais em conjunto,obrigatoriedade de profissionais com experiência técnica na chefia da agência,entre outras medidas,fizeram com que eventos climáticos posteriores não fossem tão devastadores,especialmente em perdas de vidas humanas.
A importância de educar a população também ficou clara,afirma Jill Trepanier,chefe do Departamento de Geografia e Antropologia da Louisiana State University.
A devastação do furacão Katrina — Foto: AFP
— Antes,havia só um aviso de que a temporada de furacões estava para começar; hoje,há campanhas ensinando as pessoas sobre como se preparar e o que fazer,vários dias antes de a tempestade chegar — explica. — Eventos negativos acabaram levando a resultados mais positivos porque hoje as pessoas creem e agem quando você diz que uma tempestade está chegando,porque elas veem o que aconteceu em outros lugares.
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