Gislaine Rosa e João Paulo Pacífico na assinatura da criação do Fundo Patrimonial Joaquim Rosa Cambraia — Foto: Reprodução
Gislaine Rosa e João Paulo Pacífico na assinatura da criação do Fundo Patrimonial Joaquim Rosa Cambraia — Foto: Reprodução
GERADO EM: 25/10/2024 - 05:00
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A mineira Gislaine Rosa vinha há um ano tentando contatar João Paulo Pacífico,CEO do Grupo Gaia,sem sucesso. Fazendeira com propriedades no Sul de Minas e em Goiás,ela tinha gostado de um post de João Paulo sobre agricultura sustentável e tinha algumas ideias para trocar,mas seus acenos invariavelmente se perdiam nas caixas de mensagens das redes sociais.
João Paulo é uma espécie de infiltrado na Faria Lima. Um gestor ativista bastante ativo nas redes. Tem 219 mil seguidores no Instagram,onde costuma atacar a ganância das grandes corporações e fazer a defesa de uma sociedade mais justa e sustentável. Ele tem uma securitizadora focada em investimentos de impacto e já levantou mais de R$ 20 milhões para financiar a produção de alimentos sem agrotóxicos do Movimento Sem Terra (MST).
Gisa,como gosta de ser chamada,estava quase desistindo: — Estava achando ele muito estrela. Aí uma amiga foi a um congresso onde o João estava e conseguiu o celular dele —.
Era sua última cartada e ela resolveu caprichar na mensagem:
“João,eu tenho uma área de 1.500 hectares. Gostaria que a Gaia ou você fossem meus “herdeiros”,meus parceiros para transformar a fazenda. Ou sua orientação,como posso fazer uma parceria. Podemos inclusive trazer agricultores para fazermos uma fazenda modelo sócio econômico com eles.”
Isso foi em 12 de julho. Três dias depois,João e Gisa se encontravam em São Paulo para traçar os planos de transformar a Fazenda Pinheiros,um conjunto de propriedades somando 1.500 hectares no entorno do município de Campo Belo,no sul de Minas Gerais,em um modelo socio ambiental de produção agrícola: adotando o sistema agroflorestal de cultivo,com agricultores familiares trabalhando coletivamente. Na propriedade,que remonta ao avô de Gisa,hoje planta-se soja e milho e cria-se gado.
A Fazenda Pinheiros e mais uma doação em dinheiro somam um patrimônio de cerca de R$ 40 milhões que agora pertencem ao Fundo Patrimonial Joaquim Rosa Cambraia,homenagem ao pai de Gisa. O fundo será gerido pela Gaia Legado,gestora de fundos patrimoniais de impacto do Grupo Gaia.
— O fundo patrimonial vai garantir a perenidade do propósito,para que daqui a 200 anos essas terras estejam produzindo alimentos,sem veneno e sem especulação imobiliária — diz João Paulo,que contou com a assessoria da advogada especialista em terceiro setor Priscila Pasqualin para estruturar o fundo.
Gisa é quase uma fazendeira acidental. Ela queria mesmo ser jornalista. Saiu de Campo Belo e foi para o Rio,onde cursou jornalismo e direito. Chegou a fazer estágio nas rádios Globo e JB FM. Mas a carreira foi abreviada por uma notícia trágica: a morte precoce do seu pai,aos 52 anos. Era 1990,ela tinha 27 anos e voltou para a terra natal para cuidar dos negócios da família. O irmão Carlos Alberto,o Beto,ficou administrando as fazendas. Coube a Gisa pilotar uma concessionária Fiat,aberta por seu pai com o desejo de assegurar um futuro para a filha.
— Meu pai não me queria de jeito nenhum no meio de peão — diz Gisa com seu sotaque mineiro. Ela relembra o furor quando souberam que a concessionária seria comandada por uma mulher: — Vieram me falar que já tinham arrumado um comprador. Respondi que só debaixo do meu cadáver.
A concessionária que vendia "meia dúzia de carros" hoje tem 10 mil m²,70 funcionários e uma filial.
Uma outra notícia triste,porém,acabou levando Gisa a se meter no meio dos peões. A morte da mãe,Amah,em 2006. Pouco depois,seu irmão teve um AVC. Quando os dois irmãos fizeram a partilha,em 2017,Gisa ficou com a Fazenda Pinheiros e mais duas propriedades em Goiás,além da concessionária.
Foi quando ela começou a fazer intervenções pontuais na fazenda: se voltou para a “produção de água”,recuperando 64 nascentes. — Eles criavam porco solto e isso acaba com as nascentes — diz ela,que também reservou uma lavoura para o cultivo de cafés especiais,com colheita manual feita por mulheres,sob a marca Café da Bananeira. Gisa contratou professores para alfabetizar quem ainda não era letrado e dar curso de inglês para as novas gerações.
— Meu sonho era ter uma fazenda modelo de sustentabilidade,com escola técnica para os funcionários. Foi aí que comecei a procurar o João — diz Gisa. Ela não teve filhos. O irmão faleceu ano passado.
Foram diversas reuniões sobre a nova era da Fazenda Pinheiros até que,há poucas semanas,Gisa recebeu uma outra notícia que fez do seu sonho uma urgência: um diagnóstico de câncer avançado.
— Sempre tive vontade de compartilhar,de dividir. Estou muito emocionada,com uma alegria e uma paz imensa de saber que a plantação vai ser orgânica,que as águas serão preservadas,que vai ter escola para as crianças,quem sabe um posto de saúde,uma capelinha — disse Gisa,que recebeu a coluna com um sorriso largo e um docinho de leite em seu quarto no Hospital Sírio Libanês,em São Paulo,na última terça-feira (22).
— Guimarães Rosa dizia que o que a vida quer da gente é coragem. Ainda bem que tive essa coragem de ir atrás do João e não desistir. Sozinha eu não saberia por onde começar —.
Pergunto se tem algum arrependimento: — Nenhum,sou muito grata por tudo. Arrependo de não ter feito isso mais cedo. Mas já está sendo feito. Não vou arrepender mais —.
As outras propriedades Gisa pretende vender,doando o dinheiro para hospitais beneficentes. A concessionária,ela quer deixar para os funcionários.
PLANTIO COLETIVO
O projeto da Fazenda Pinheiros deve se chamar Nova Era de Gaia e abrigar 120 famílias de agricultores,em um modelo cooperativo,com plantio coletivo. Serão priorizadas para receber moradia,com direito de permanecer para sempre nas terras,famílias de agricultores da região.
A fazenda vai passar por um reflorestamento e a implantação do sistema agroflorestal — em que as culturas agrícolas são plantadas em meio a árvores — vai contar com a assessoria técnica do Movimento Sem Terra (MST),que também deverá auxiliar na comercialização da produção.
— Não é um assentamento do MST — ressalta João,já respondento aos confrontantes (vizinhos das fazendas) que com as primeiras notícias sobre a doação passaram a temer uma "invasão de sem terras".
— Estamos criando um novo modelo economicamente viável de regeneração de fazendas,com produção de alimentos,com gente morando lá dentro. É uma solução ambiental,econômica,social e alimentar. Queremos criar um modelo que possa ser replicável,inspirando outras pessoas a fazerem doações de terras para serem regeneradas — completa.
A escola da fazenda já tem nome: Padre Justino,uma homenagem a um padre holandês conhecido por ter feito o primeiro assentamento no Brasil,muito antes do nascimento do MST nos anos 80. Justino era professor,amigo do pai de Gisa e frequentava a fazenda. — Meu pai cedeu umas terras para o Padre Justino plantar arroz há 45 anos. O padre era um visionário — lembra Gisa. Só agora,em meio às reuniões para o desenvolvimento da “Nova Era de Gaia”,ela descobriu que o padre Justino da sua infância é um ícone celebrado pelos trabalhadores rurais.
Vista aérea da Fazenda Pinheiros,no Sul de Minas — Foto: Reprodução
Gislaine Rosa,com pé de café no Sul de Minas — Foto: Arquivo pessoal
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